sábado, 7 de novembro de 2009

Por que viver deprimido? por Donaldo Schüler

Reproduzo abaixo o artigo do querido Donaldo que, por força das coincidências da vida, veio a escrever sobre a brilhante apresentação de Maria Rita Kehl, cujo artigo pode ser lido alguns posts abaixo, e que falava do tempo... E, como se não bastasse a reflexão desta, deparo-me com essas palavras de Donaldo que me enchem de poesia e me fazem acreditar que não estamos sozinhos.
Obrigada, Donaldo.

Cláu



JORNAL ZERO HORA
01 de novembro de 2009 | N° 16142

Por que viver deprimido?

por Donaldo Schüler

Maria Rita Kehl nos brindou com uma bela exposição na noite de 26 de outubro no Fronteiras Braskem do Pensamento. Ali, vendo-a falar, me deu vontade de conversar com ela, porque ela discorre sobre coisas que nos interessam: depressão, tempo, vazio, medicamentos, droga...

Nem todos os conflitos originam-se da relação pai-mãe-filho. Ouça-se Deleuze! Pelo viés do Outro, Maria Rita ultrapassa o conflito familiar. No Outro cabe tudo o que está acima do outro (cada um de nós). O Outro abarca Deus, Deuses, Bem, Lei, Pai, Mãe, Mulher, Falo, Vazio, a Opinião pública, o A-gente heideggeriano, Bullying, Velocidade, Riqueza... Houve época em que o Outro abarcava conceitos fixos, essências: Ser, Deus, Bem, Justiça, Amor, Lei... Porque tudo já estava feito, havia pouco a fazer. Ao longo dos séculos, o que era fixo se diluiu, o sólido virou líquido, a lei se converteu em princípios morais opressivos. O Outro (O Capital, por exemplo) nos faz exigências que nos deprimem. Se tempo é dinheiro, bom é aquilo que se pode comprar. Como as ofertas do mercado ultrapassam em muito nossa capacidade de consumir, caímos em depressão. Da depressão, recursos mágicos (dinheiro, medicamentos ou drogas) não nos redimem.

Maria Rita nos propõe outro caminho. Em lugar de nos orientarmos pelo princípio de que tempo é dinheiro, suponhamos que tempo seja a construção de nós mesmos. Se é assim, o vazio em nós, em torno de nós (outros), acima de nós (Outro) pode entristecer-nos, como pode chamar-nos a atuar. Quando? Quando não somos oprimidos pela necessidade (trabalhar para ganhar dinheiro), nem pela velocidade, nem por obrigações para ontem. O ócio, consumido pelo negócio, não é perda de tempo. Já dizia Drummond: “Ganhei, perdi meu dia”. Dia perdido para o mundo dos negócios pode ser dia ganho para nós mesmos. Não delimitemos o dia da construção de nós mesmos ao nascer e ao desaparecer do sol, o dia de trabalho dedicado a nossa própria edificação dura a vida inteira.

O tempo de Maria Rita é o agostiniano, o da espera ou o bergsoniano, o da duração. Aqui entramos no território da ética. Viver eticamente não significa submeter-se a padrões impostos pela tradição. A tradição nos esmaga quando a arrastamos à maneira de um peso morto. Soa-nos aos ouvidos a palavra de Stephen Dedalus (um escritor inventado por James Joyce): “A história é um pesadelo do qual tento me libertar”. A história só não é pesadelo se a repensamos e a reinventamos. Se somos capazes de reconstruir, com fragmentos recolhidos de outros tempos, vivemos eticamente. Ética e poética se confundem. A poetização da vida começa na construção de nós mesmos, aliados a outros construtores.

Além do outro, abre-se o espaço do Outro. O outro é limitado, o Outro é infinito. Se cruzamos os braços, o Outro nos esmaga. Se arregaçamos as mangas, o Outro nos oferece rotas imprevistas, múltiplas, infinitas. Os que vivem eticamente movem-se com os outros em direção ao Outro. Se não fizermos diferença entre os outros e o Outro, desaparecemos sufocados entre as quatro paredes a que nós próprios nos condenamos.

Se a distância que nos separa do Outro deprime, a depressão é o ponto de partida para grandes realizações. Em lugar da depressão, a arquitetura. Para os que vivem eticamente, a inutilidade é ganho. Inútil é a arte, o brinquedo, o canto, a dança, o escrever, o falar. No saber aproveitar a riqueza do inútil cotidiano reside o saber viver.

Um homem que soube viver eticamente foi Machado de Assis, pessoa de parcos recursos que poderia ter morrido no sem-sabor do emprego público. Revisitemos as últimas palavras de Brás Cubas, o das Memórias Póstumas. Declara a personagem que, por não ter tido filhos, não deixou a ninguém o legado de suas misérias. Brás Cubas, em lugar de entregar-se aniquilado a uma morte anônima, dedica as Memórias ao primeiro verme que devorou sua carne. É o triunfo da palavra, da arte, da invenção sobre a extinção. O mesmo Machado escreve o Instinto de Nacionalidade, ensaio memorável em que o ficcionista propõe que troquemos modelos do passado pela construção do futuro. Mais Machado e menos Prozac, além de outras descobertas maravilhosas como Zoloft, Cipramil e Luvox, medicamentos seguros, capazes de produzir relaxamento em pessoas sem patologia, deixando-nos despreocupados, tranquilos, sem irritação, sem estresse, felizes, massificados, inúteis.

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